É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da
Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos
domingos.
O fracasso vai
além dos presídios
Marcio Silva/AFP
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Parentes aguardam notícias perto de presídio em Manaus
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05/01/2017 02h00
Mal estava digerindo o noticiário sobre o massacre
em Manaus quando caiu na minha caixa postal mensagem da AOAV (sigla em inglês
para Ação sobre a Violência Armada).
Relatava, com alarme, que o número de pessoas mortas em 2016 pela polícia de dois dos países do Reino
Unido (Inglaterra e Gales) havia alcançado um recorde na comparação
com os dez anos anteriores.
Li e reli três vezes o texto para ver se havia
entendido direito. Sim, o recorde de mortos pela polícia em nove meses de 2016
foi de cinco pessoas.
Repito: a polícia da Inglaterra e Gales matou cinco
pessoas em 2016, superando o recorde de 2006 (seis pessoas).
No Brasil, para comparação: em 2015, a polícia matou nove
pessoas por dia. Repito: nove pessoas por dia versus cinco por ano.
O número de policiais mortos no mesmo ano (393) foi
de pouco mais de um por dia. São números do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública relatados por esta Folha em outubro.
Trata-se de um abismo civilizatório insuperável. Se
se quiser a comparação clássica, os dados mais recentes da UNODC (Escritório
das Nações Unidas para Droga e Crime), relativos a 2012, mostram que, no
Brasil, há 21 homicídios para cada 100 mil habitantes, 20 vezes mais que o 1,2/100
mil do Reino Unido.
Se você preferir uma comparação mais retórica,
frequentemente usada, eis a que me passou Iain Overton, da Ação sobre a
Violência Armada: "De uma perspectiva britânica, os níveis brasileiros de
homicídios são quase iguais aos de uma zona de guerra".
"Quase" é bondade sua, Iain.
A análise de Overton é mais abrangente: "Ao
contrário do Brasil, o Reino Unido não tem uma cultura endêmica de armas nem
tem problemas profundamente arraigados com gangues de drogas nem policiais
pesadamente armados nem um legado de brutalidade policial e mortes
extrajudiciais".
Ou, posto de outra forma, o massacre de Manaus é
apenas um pedaço de um imenso iceberg. Bem feitas as contas, a superlotação dos
presídios e o domínio deles por facções criminosas são um pequeno retrato da falência
do Estado brasileiro.
Ou, como preferem Robert Muggah e Ilona Szabó de Carvalho, do Instituto Igarapé,
em artigo para o "New York Times": "Os políticos brasileiros
carecem da determinação política e moral para fazer a coisa certa".
Vale para a crise da segurança pública, vale para o
conjunto da obra de construção do Brasil.
Só temo que estejamos chegando perto do sombrio
prognóstico de Daniel Innerarity, notável catedrático de Filosofia Política
espanhol, hoje professor visitante da Georgetown University:
"A democracia sobrevive quando a inteligência
do sistema compensa a mediocridade dos atores", escreveu para a edição desta quarta-feira (4) de "El País".
É evidente a olho nu que os atores disponíveis no
Brasil nos últimos muitos anos são medíocres, com exceções que não superam os
dedos de uma mão.
Resta torcer para que a democracia - a melhor coisa
do sistema - não escorregue pelas brechas nele expostas com contundência por
episódios como o de Manaus.
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