Vice foi o industrial que exerceu o mais alto cargo da República
Valor Econômico
César Felício, Paulo de Tarso Lyra e Cristiane Agostine
De Belo Horizonte, Brasília e São PauloCésar Felício, Paulo de Tarso Lyra e Cristiane Agostine
Desde a independência do Brasil, José Alencar Gomes da Silva foi o industrial brasileiro que mais próximo esteve do poder, ao se eleger vice-presidente duas vezes e exercer de forma interina, por mais de um ano, a Presidência da República nas viagens internacionais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde 2003.
Descendente de um casal com 15 filhos, nascido na região rural de Muriaé (MG), em 1931, Alencar interrompeu os estudos antes de terminar o primeiro ciclo da educação, da mesma forma que Lula. Além de Lula e Alencar, houve apenas um outro presidente ou vice brasileiro sem ensino superior: João Café Filho, vice que ocupou a Presidência entre 1954 e 1955.
O futuro empresário deixou a escola para trabalhar como balconista em uma loja de Muriaé. Dormia no corredor de uma casa de pensão. Diversas vezes, em entrevistas, Alencar referiu-se com emoção a essa época e fez questão de deixá-la registrada na página da holding Coteminas na internet. Tornou-se comerciante varejista de tecidos em 1950, na cidade de Caratinga (MG).
A migração de Alencar do mundo empresarial para o político começou em 1989, ao eleger-se para a presidência da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg). Mas a aproximação com a vida pública se iniciou antes, no início da década de 80, ainda nas associações de classe. Já havia tentado, sem sucesso, ser presidente da Associação Comercial de Minas quando chegou à presidência da Fiemg.
Alencar tratou de colocar a marca da Fiemg por todo o Estado, espalhando unidades do Senai. A visibilidade na presidência da entidade foi o trampolim para sua primeira disputa política, a candidatura ao governo de Minas, pelo PMDB, em 1994. Foi com a cabeça já na política, que transferiu para os filhos, neste mesmo ano, a maior parte do patrimônio em seu nome. Mas, com pouco mais de 900 mil votos (10,7%), foi o terceiro colocado na disputa vencida pela atual senador Eduardo Azeredo (PSDB). Fora da Fiemg e da política, entre 1995 e 1997, voltou a dedicar-se à expansão da sua indústria, a Coteminas.
Já no início do seu tratamento contra o câncer, em 1998, Alencar concorreu pelo PMDB ao Senado, na chapa encabeçada pelo ex-presidente Itamar Franco (PMDB) como candidato ao governo. Ajudou a derrotar o tucano Eduardo Azeredo, candidato à reeleição, em uma campanha onde o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que buscava a própria recondução à Presidência, procurou manter-se distante de Minas.
Elegeu-se senador gastando R$ 3 milhões em uma campanha bancada quase que integralmente com recursos próprios, Alencar iniciou sua atuação no Congresso alinhado ao itamarismo, propondo a renegociação dos acordos das dívidas do Estado com a União, mas rapidamente afastou-se do governador mineiro. Na biografia autorizada " José Alencar-Amor à vida", da jornalista Eliane Cantanhede, Itamar Franco é a única personalidade a receber críticas - pesadas - do ex-vice-presidente.
A articulação para a candidatura de Alencar à Vice-Presidência na chapa de Lula começou em abril de 2001, bancada pelo próprio futuro presidente e pelo então presidente do PT, José Dirceu. O objetivo era duplo: conseguir uma aliança simbólica com o empresariado nacional e cavar uma cunha em Minas Gerais, aproveitando-se do fato de Itamar estar em total rota de colisão com o então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Dono de 11 fábricas têxteis em 2001, a primeira dela construída com 75% dos recursos vindos da Sudene, em 1969, Alencar no Senado havia tornado-se um crítico duríssimo da política econômica de Fernando Henrique.
"No governo FHC, achou-se bonito construir-se déficits comerciais. Houve um momento em que o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes colocava que o México já estava com 15% de déficit na balança comercial e nós ainda estávamos com superávit. O período de Gustavo Franco no BC foi um crime, em qualquer lugar este homem seria processado. A abertura de fronteiras se fez fortalecendo o contrabando, com uma redução de tarifas e política cambial equivocadas", disse Alencar, em entrevista ao Valor em maio de 2001, ao defender a eleição de um governo oposicionista.
Ainda assim Alencar era visto com desconfiança pela esquerda por demarcar distância também das políticas econômicas então pregadas pelo PT. Preocupado com a política de subsídios dos Estados Unidos à cotonicultura, Alencar defendia na ocasião o ingresso do Brasil na Alca, a frustrada iniciativa do governo Bill Clinton para a construção de um acordo de livre comércio entre os Estados Unidos e a América Latina. O tema era objeto de repúdio total por parte da oposição a Fernando Henrique.
Ao buscar um partido para compor a chapa de Lula, Alencar hesitou entre o PSB e o então PL, hoje PR, partido liderado pelo deputado Valdemar Costa Neto (SP) e muito identificado com a vertente evangélica da Igreja Universal do Reino de Deus. O então senador mineiro optou pelo PL. A decisão aproximou Alencar de um dos partidos que esteve no epicentro do escândalo do mensalão, que abalou o governo Lula em 2005.
Próximo da renúncia para evitar a cassação de seu mandato, Costa Neto rememorou publicamente a reunião em que a aliança foi fechada. O deputado disse que, enquanto Lula e Alencar conversavam em uma sala reservada, ele e Dirceu negociavam, em outro ambiente do apartamento, recursos para suprir os gastos eleitorais do PL na campanha de 2002 - verba proveniente do chamado "valerioduto", o fluxo de recursos gerido pelo publicitário mineiro Marcos Valério de Souza. O governo chegou a temer, por alguns dias, um pedido de impeachment de Lula e Alencar, por crime eleitoral. Na época, se isso acontecesse, quem assumiria a Presidência da República seria o então presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE). Durante a crise do mensalão, Alencar saiu do PL para ingressar no PRB, criado sob inspiração da Igreja Universal.
Na condição de vice-presidente, Alencar procurou, de maneira quase monocórdica, contestar a política econômica do governo federal, pedindo uma queda radical da taxa de juros. "Enquanto o capital especulativo tiver uma remuneração maior do que o capital produtivo, o Brasil não vai superar seu ciclo de miséria e desigualdade", dizia repetidamente.
Apesar dessa divergência explícita, Alencar manteve intocado seu relacionamento com Lula, que fez com que fosse escolhido para voltar a compor a chapa presidencial em 2006, em pleno tratamento contra o câncer.
A escolha, contudo, não foi tranquila. Querendo assegurar a governabilidade num eventual segundo mandato, Lula abriu negociações para ceder a vice ao PMDB. O atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, foi sondado, mas recusou. Somente às vésperas do lançamento oficial da chapa da reeleição, Alencar foi confirmado como candidato a vice.
Durante o governo Lula, Alencar tornou-se o único vice-presidente da história brasileira a acumular a função institucional com um ministério. Alencar foi indicado por Lula para assumir o Ministério da Defesa, em novembro de 2004. Substituiu o diplomata José Viegas, que pediu demissão depois de uma crise com o Exército. O vice não enfrentou problemas com nenhuma das três Forças, mas deparou-se com uma crise no setor de aviação civil, em função da virtual insolvência da Varig. Alencar atuou para impedir a venda da empresa ou a decretação de sua falência. Posteriormente, a empresa foi comprada pela concorrente Gol.
Já no segundo mandato, Alencar indicou, contra a opinião de ministros, partidos aliados e acadêmicos, o professor Roberto Mangabeira Unger, um crítico de Lula, para a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, cuja proposta de criação foi recusada no Congresso e mais tarde substituída pelo Ministério Extraordinário de Assuntos Estratégicos, criado por decreto. O próprio Lula resistiu durante muito tempo a confirmar a posse de Mangabeira, mas dizia que não podia resistir a um apelo do seu vice.
O desempenho político de Alencar andou lado a lado com uma saúde frágil. Desde 1997, o vice-presidente passou por cirurgias. Nas duas primeiras intervenções, tirou dois tumores: um no rim e outro no estômago. Em 2000, o vice foi submetido a uma cirurgia para retirada de um novo tumor, dessa vez na próstata. Durante a campanha de 2006, foi detectado um novo tumor, na musculatura das costas.
Em 2007, um novo tumor maligno foi diagnosticado no peritônio e uma nova cirurgia foi realizada em outubro. No fim de dezembro, outro nódulo na mesma região foi detectado, o que obrigou Alencar a iniciar tratamento quimioterápico nos primeiros dias de janeiro de 2008.
No dia 17 de outubro - seu aniversário - Alencar foi submetido a uma nova cirurgia para retirada de um tumor no abdômen. Em novembro, nova internação, desta vez para tratamento de uma infecção intestinal. Menos de um mês depois, nova internação, desta vez por insuficiência renal. No dia 25 de janeiro, o vice passou por mais uma cirurgia complexa, com duração de quase 18 horas, para a retirada de um tumor principal de 12 cm. de diâmetro e cerca de dez tumores satélites na região abdominal. Ao longo de 2009, recebeu uma série de homenagens em Minas Gerais e chegou a admitir, em uma viagem ao Estado na condição de presidente em exercício, que poderia candidatar-se ao Senado em 2010. Com grande prestígio local, Alencar não constituiu contudo um grupo de seguidores e nunca se articulou com prefeitos ou deputados.
Em 2010, a oito dias de deixar o cargo, foi submetido a uma operação de urgência, para contornar uma hemorragia digestiva grave, menos de uma semana depois de ter recebido alta. Na internação anterior, foi operado para desobstruir o intestino e a cirurgia resultou na extração de dois nódulos e 20 centímetros de seu intestino delgado. No fim do procedimento, sofreu uma arritmia cardíaca, que foi revertida.
Na reta final de seu mandato, o presidente Lula fez diversas vezes elogios a Alencar, sempre dizendo que "não há um vice melhor do que ele". No fim de outubro, na reta final do segundo turno das eleições, Lula visitou Alencar no hospital e, emocionado, disse a ele: "Nós subimos a rampa [do Palácio do Planalto] juntos e vamos descer juntos."
Não foi possível. No dia da entrega do cargo à candidata de ambos, Dilma Rousseff, Alencar amargava mais uma internação, essa motivada pelas sucessivas hemorragias e pela necessidade de tratamento do câncer no abdômen. Nem por isso deixou de participar, a seu modo, da cerimônia. Vestiu um terno e chamou os jornalistas para uma coletiva na qual disse que sua missão "estava cumprida".
Deixou o hospital no dia 25 de janeiro para receber uma homenagem no dia do aniversário da cidade de São Paulo. Com o quadro de saúde estabilizado, recebeu alta hospitalar no dia 26 de janeiro, porém poucos dias depois teve que retornar ao Sírio-Libanês, por causa de uma perfuração intestinal.
Foi a penúltima internação de Alencar. Em 15 de março, o ex-vice-presidente recebeu nova alta hospitalar, depois de 34 dias de internação. Retornou na segunda-feira ao hospital, já em estado crítico.
José Alencar era casado com Mariza Campos Gomes da Silva, desde e deixa três filhos como herdeiros de seu império empresarial: Josué, Maria das Graças e Patrícia. Não deixa herdeiros políticos.
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